Querer experimentar a alta cozinha em Portugal é como mergulhar à procura de corais coloridos numa lagoa turva de uma pedreira no Norte da Alemanha. Difícil, mas é verdade.
As minhas experiências pessoais em restaurantes portugueses com estrelas Michelin pareciam pseudo e falsas. Uma tentativa ineficaz desde o início.
No entanto, este pequeno país é ótimo numa coisa: a arte culinária autêntica, uma cozinha de produtos sólidos e regionais. Se a conseguirmos encontrar – como eu encontrei agora.
Visto desta perspetiva, um dos melhores restaurantes do país é O Gaveto, em Matosinhos, o porto de pesca do Porto. Conheci-o há anos através da lenda do vinho Dirk Niepoort. Esta zona da cidade tem vindo a ser gentrificada nas últimas décadas. Mas ainda há bastantes ruas sujas e ruínas que poderiam ser o cenário de um filme de Alfred Hitchcock.
Apesar da gentrificação, é possível encontrar edifícios no porto de pesca do Porto, em Matosinhos, que estão à procura de um investidor.
A fachada elegante de O Gaveto, numa rotunda movimentada, passa facilmente despercebida. À primeira vista, o interior simples não dá qualquer ideia das grandes coisas que o esperam. Entrando pelo fresco bar de marisco, depara-se com um ambiente funcional e sóbrio, sem a obrigatória televisão e iluminação de néon, mas também sem velas e mosquiteiros. É luminoso. A ideia é que se possa ver o que está no prato.
Nalguns aquários de água salgada, lagostas e lagostins de tamanho XXL aguardam o momento da verdade, e o peixe do dia está em vitrinas de gelo. Estes também estão disponíveis nas armadilhas turísticas mais próximas. Só quem olha com atenção percebe as diferenças. Uma sala de jantar cheia é um indicador, mas também que as mesas não estão demasiado cheias. Isso pode ser uma pista.
Arroz de Lavagante. Em Portugal, o peixe provém maioritariamente das águas frias do Atlântico.
No restaurante, os clientes internacionais e os locais misturam-se, as famílias numerosas sentam-se ao lado das mais pequenas. Outro indicador? Não é rígido, mas informal e concentrado. Hoje em dia, é raro ver um serviço só de homens (será que é preciso?), mas a média de idades da brigada, acima dos 40 anos, é surpreendente. Porque, na Alemanha, os militares desta faixa etária praticamente já não estão disponíveis no mercado de trabalho. É pena, porque esta soberania e serenidade experimentadas, se não forem embotadas pelos anos, podem dar um excelente serviço. Aqui em O Gaveto, é o caso. A malta trabalha com calma, com reserva, com naturalidade, com determinação e sem artifícios. O que interessa é a comida e a bebida tradicionais, não o espetáculo.
Amêijoas á Bulhão Pato com coentros, Ostras ao natural do Algarve, um espumante acompanha na perfeição
A noite começa sem amuse-bouche, mas com um delicioso espumante, Silica Blanc de Noir (Baga) de Paula Riba d’Ave, e tostas com manteiga grelhada. O menu começa com amêijoas num caldo cremoso de azeite e manteiga, alho, coentros e lima. Qualidade divinal, cozinhadas na perfeição e acompanhadas por uma subtil doçura de noz da suculenta carne do mexilhão. Ainda não consegui obter esta qualidade neste país. O mais simples é muitas vezes o mais difícil, porque o equilíbrio do prato deve ser preparado com um gosto absoluto. “Tão simples quanto possível, mas por favor não mais simples!” é a afirmação deste prato.
Os “Camaro de Costa” locais ainda estão no início da época, por isso são pequenos e têm de ser puxados à mão. São frescos e húmidos. Gosto de usar as minhas mãos para comer. Agarrar o que se come, apreciar o que se é. A vida torna-se terrena. Pedimos seis ostras do Algarve de excelente qualidade, perfeitamente abertas e carnudas. Um caldo verde quente, um dos pratos nacionais de Portugal, feito de chouriço, couve galega e batatas cozidas, faz parte da refeição. Suave, cremoso e cozinhado sem natas. Perfeito para o clima fresco e húmido do outono.
Infelizmente, na nossa última visita, não comemos os deliciosos percebes nem os finos mexilhões de pau. Deve-se sempre perguntar qual é o peixe do dia.
Os percebes, também conhecidos como cracas, são pequenos caranguejos. Uma especialidade colhida ao longo de toda a costa com risco de vida, têm um sabor incomparável. Estes provêm da pesca sustentável do Parque Natural da Berlenga, na ilha de Leiria, a norte de Lisboa.
O sommelier e chefe de sala João Silva recomenda um vinho da Bairrada. Juntamente com o seu irmão José, partilha as funções do restaurante fundado em 1984 pelo seu pai Manuel Pinheiro. Mais tarde, o cliente – como faz todas as noites – percorrerá brevemente O Gaveto. Por um lado, para prestar homenagem e, por outro, para contar a faturação, como comenta João com um humor português seco.
O Cercial 2016 da Quinta de Bageiras, proveniente dos solos calcários da Bairrada marítima, surge com um pouco de ar e na garrafa como um grande vinho, com uma mineralidade vigorosa, um aroma picante e um nariz complexo. Custa 75 euros e não se encontra em lado nenhum na net. Vale sempre a pena dar uma olhadela ao menu e ainda não percebi bem como é que o João faz os cálculos. Mas isso não importa, porque não há nada mais justo do que isto. Pode confiar a 100% nas suas recomendações.
Cercial ou Sercial é uma casta branca que reflecte perfeitamente a sua origem e tem uma acidez fina. É proveniente dos solos calcários da Bairrada. A qualidade do “Bacalhau Especial” é épica.
Se nunca comeu bacalhau, o bacalhau salgado e seco da Noruega, em Portugal, é porque nunca lá esteve. É preparado em inúmeras variações e tem qualidades muito diferentes. Comi o melhor como “especial” para 2 pessoas n’O Gaveto. Um prato em toda a sua simplicidade e perfeitamente composto. Um belo centro de mesa é assado no forno, estaladiço, em azeite, com tomate e grandes anéis de cebola fantasticamente caramelizados. É acompanhado por batatas cozidas farinhentas, do tipo que conheço e aprecio da bouillabaisse. O contraponto agradavelmente fresco e amargo é dado pela couve galega verde passada por manteiga, cujo sabor faz lembrar os brócolos ou mesmo o agrião.
O peixe é habilmente cortado em filetes à mesa. As grandes lamelas que repousam no prato fazem inchar o coração. Claro que o bacalhau é salgado, mas este é suave e perfeito em combinação com os outros componentes. Um prato que não podia ser mais bem confeccionado. Teria merecido 3 estrelas. Mas elas não brilham aqui.
Um prato tradicional de classe mundial “Bacalhau Especial”.
Não encontrará n’O Gaveto as sobremesas portuguesas da velha guarda. De qualquer forma, não há mais espaço. Mas um prato de fruta, sempre de excelente qualidade, e uma fatia de bolo de amêndoa leve, são sempre bem-vindos. Sobretudo com uma meia garrafa de Boal Frasqueira Madeira 2000 da Barbeito, meio doce, com uma acidez de raio laser e um aroma a banana e manga. Um manifesto ao grande e longo passado da vitivinicultura lusitana.
Uma sobremesa líquida e um dos últimos dinossauros do mundo do vinho, o Madeira. Um vinho que se eleva a grandes alturas com algumas ferramentas culinárias simples, como esta.
Estamos felizes, a desfrutar do momento, mas já a pensar na próxima vez. Depois, talvez um arroz de lavagante decadente ou um robalo fresco sob uma crosta de sal?
Somos tomados pela melancolia, pela saudade e por uma pitada de soda. Agora temos de esperar pelo menos um ano para voltar a estar aqui. Até lá, mantemos a cabeça à tona da água com as memórias maravilhosas. Como um mergulhador de coral depois das suas férias na Grande Barreira de Coral.
Link da notícia original (escrita em Alemão) – https://shop.weinamlimit.de/magazin/restaurante-o-gaveto-matosinhos-porto/?fbclid=IwAR2qKlqS0T3zG87VJfRHC1YqDyeDN2M6j3-pzCM3D1tN3TPmBwn6iDgBsss