Restaurante O Gaveto

Por diversas vezes, Eduardo Souto de Moura e Álvaro Siza Vieira, vencedores do Prémio Pritzker, que distingue os mestres da arquitetura mundial, almoçaram juntos no restaurante O Gaveto, um farol da cozinha tradicional em Matosinhos e que se mantém fiel à identidade gastronómica desde a abertura, em 1984. Pelé, Pinto da Costa e muitos jogadores do F. C. Porto conhecem bem esta sala de refeições. Tal como a família Niepoort, grande amiga de uma casa que se transformou, também, num espaço de partilha e conhecimento vínico. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos viajar no tempo – com o apoio do Recheio – para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.

Manuel Pinheiro passava no Mercado de Matosinhos quase diariamente para abastecer o restaurante Ribeiro, situado na Praça dos Poveiros, no Porto. Sem contar, é desafiado por uma peixeira que o conhecia bem: “Ó senhor Manuel, há ali um restaurante novo, só que eles não se entenderam e vai fechar. Você tinha interesse naquilo?”. Pouco tempo depois, ouve novo repto na confeitaria de um colega. “Mais dia, menos dia, aquilo vai fechar e é o melhor espaço de Matosinhos…”. Foi o suficiente para lhe despertar a atenção. Manuel foi espreitar e ficou mesmo com o espaço. Negociou o pagamento das dívidas e em julho de 1984 abriu o restaurante O Gaveto.

Manteve o Ribeiro até 2005, mas era no concelho vizinho que Manuel iniciava a nova etapa. Naquele tempo, existiam por ali “fábricas de conservas”, “tascas para os pescadores” e cerca de “meia dúzia” de restaurantes, como a Marisqueira Antiga, o Majára e o Proa. O Gaveto aposta nos mariscos e peixes da nossa costa. Nessa altura, havia a tradição de vir lanchar mariscos e beber cervejas ao balcão”, e o costume da ceia. Lembro-me que, nas primeiras vezes que vim ajudar o meu pai, aos fins de semana, vinha tudo do cinema à 01h30 da madrugada comer um petisco. O restaurante fechava às 02h e ainda estava gente à espera para se sentar”, recorda João Carlos Silva, filho de Manuel e a dividir a gerência executiva com o irmão, José Manuel Silva.

Na zona de snack-bar gravitava-se à volta do balcão, saboreando camarão da costa, percebes, francesinhas ou pregos em pão, e refrescando com o fininho. À sala de refeições afluía uma clientela diferente”, de apetites menos ligeiros, mas igualmente exigentes. Hoje em dia já não se vendem tantos snacks e petiscos fora de horas. O consumo orienta-se para refeições mais rápidas e o horário da cozinha passou a coincidir com o da sala de refeições, num serviço contínuo que encerra pelas 23h00. Mudaram, também, outras dinâmicas de operação. Manuel chegava a comprar centenas de quilos de camarão por dia e toda a gente o descascava, para depois fazer o arroz e os cremes de marisco”. Ao fim de dois ou três dias, “já ninguém queria ver camarão à frente (risos)”. Agoradescasca-se muito menos, “não há mão-de-obra nem mercadoria com abundância”.

Manuel Pinheiro, fundador do restaurante O Gaveto

As lagostas também exigiam logística especial. “Ligava a peixeira a dizer que tinha chegado um barco com lagostas, o meu pai pegava na carrinha e ia buscá-las a Viana. E como se preservavam? Prendiam-se, para não se mexerem, e um saco de serapilheira molhado com água do mar mantinha-as húmidas. E aguentavam-se”, explica João Carlos Silva. Ao entrar no restaurante O Gaveto, evidenciam-se os aquários de mariscos vivos. Antigamente, eramtanques “menores e mais baixos, as pessoas podiam pegar no marisco e escolher”.Por outro lado, “como não havia sistemas de frio, em dias de muito calor a água dos tanques aquecia bastante e morria muito mais marisco”. Era preciso ir buscar água do mar para meter nos tanques. “Íamos com uns baldes e enchíamos uma carrinha. A cada 15 dias, refrescávamos a água para o marisco não morrer. Hoje, recorre-se a sistemas eletrónicos que controlam o pH, o sal, tudo”, elucida o responsável.

Oásis de marisco e peixe fresco

João e José iam ajudando os pais nas lides do restaurante. Primeiro aos fins de semana e nas férias, depois em permanência. Superaram adversidades, olharam os desafios de frente e os comensais não os abandonaram. Belmiro de Azevedo foi cliente quase diário, desde sempre. Gostava de “coisas simples”, como peixe grelhado.O Gavetochegou a fazer entregas na casa do fundador da Sonae e a confecionar refeições para a administração da empresa. “Foi sempre um restaurante de pessoas da terra e o engraçado é que são fiéis. Ainda temos clientes desde o início, nalguns casos já os filhos. Em geral, a clientela é muito tradicional e habituou-se a comer pratos específicos em sítios específicos”. A consistência da cozinha contribui para a longevidade do restaurante e permite aos habitués dispensarem a consulta da ementa: “Já sabem o que vão comer e de onde vêm os produtos”.

“Mesa com Mérito” do guia Boa Cama Boa Mesa, em 2020, a ementa do restaurante não se altera muito, excetuando no caso dos produtos sazonais, como a lampreia, introduzida por Manuel para contrariar a fraca afluência de inverno. Aqui serve à Bordalesa e vem essencialmente dos rios Minho e Lima. Como sublinha João,“ninguém vinha a Matosinhos comer lampreia”. “Hoje, somos uma referência. Transformámos os meses mais fracos nos mais fortes. Este ano, por exemplo, não houve um dia que não enchêssemos. Caso para dizer – Primeiro estranha-se, depois entranha-se…”. Feita de altos e baixos, amaratonapercorrida pelo restaurante não o desviou da cozinha tradicional e caseira, avessa a artifícios. “Não brincamos com produtos, tudo o que é feito aqui é natural, até os molhos. Quanto mais se inventa, pior é”,justifica o veterano cozinheiro Humberto Alonso. O segredo é respeitar o produto: “Temos o mar, vamos ao mercado e compramos o que queremos. Pega-se no peixe, olha-se para a guelrinha e, se estiver vermelhinho, é uma maravilha!”.

Foto de arquivo do restaurante

Robalo, rodovalho, linguado, pregado e tamboril são algumas das espécies marinhas a passarem pela grelha, acompanhando com batatas cozidas e legumes salteados. Cerca de 45 minutos é quanto demora a preparar o Peixe assado, servido com batata, a cebola e o tomate. Abra o apetite com Ostras ao natural (€25/kg), Camarões da nossa costa (€120/kg), Percebes (€45/kg) ou Amêijoas à Bulhão Pato (€24,50), vindas de Olhão e que se devem cozinhar o mais rápido possível, com lume forte”para não ficarem rijas. Na gaveta de pratos emblemáticos guardam-se duas versões de Arroz de marisco (desde €47,40), uma com camarão e amêijoas e outra enriquecida pela nobreza do lavagante. Esta deliciosa proteína também se pode grelhar, em alternativa à Lagosta grelhada (€150/kg), e em complemento à Sapateira ou Santola recheadas.

Siza Vieira e Souto Moura juntam-se à mesa

Todos os dias há uma receita diferente de bacalhau e duas sugestões distintas de peixe e carne, entre os quais o domingueiro Cabrito e as clássicas Tripas à Moda do Porto, ao sábado. Manuel Pinheiro fundou a Confraria das Tripas à Moda do Porto, especialidade que é um sucesso também no restaurante O Gaveto. “É uma loucura” e a fama vem ainda do restaurante Ribeiro, confirma o cozinheiro. Se houver tripas, está decidida a refeição do arquiteto Eduardo Souto de Moura, que aparece duas a três vezes por semana. Numa ocasião, estava “sozinho no cantinho dele”, a saborear as tripas, e noutra mesa a Patti Smith e João Carvalho, da organização do festival Primavera Sound. Souto de Moura foi cumprimentar o “ídolo de infância” e saiu. “A senhora sabe quem era aquele senhor? O vencedor do Prémio Pritzker…”, informa o staff. “Levantaram-se os membros da equipa da cantora e foram a correr atrás dele”, recorda João Carlos Silva, a sorrir. Ficou combinado “trazer Patti Smith a Paredes de Coura e Souto de Moura ir lá”. ÁlvaroSiza Vieira vem muito menos vezes, mas “dá gosto ouvi-lo, tem uma sanidade intelectual e mental impressionante e está sempre a rabiscar”.

O Gaveto

João Carlos Silva lembra que Siza Vieira, apreciador de filetes de pescada, e Souto de Moura “vivem no mesmo prédio na zona da Foz e partilham o mesmo prédio de gabinetes de arquitetura”. Acrescenta que “a esposa do Souto de Moura, também arquiteta, é sobrinha de Siza Vieira” e que Siza e Souto de Moura, ambos vencedores de Pritzkers, “são excelentes contadores de histórias”. Hásempre “uma história para contar e mais um copo para beber” (risos). Por diversas vezes almoçaram juntos no restaurante O Gaveto e a arquitetura é tema de conversa. “É impressionante porque já têm idade para estarem reformados, mas têm trabalho até às orelhas. É só querer que aparecem trabalhos e têm muitos projetos em comum”. Quando venceram o principal galardão mundial de arquitetura foi “um festim”. Sempre que apareciam no Gaveto, alguém se levantava para os parabenizar, fazer um comentário ou tirar uma foto.

Foto autografada enviada por Pelé

Pelé e Pinto da Costa

Fotografias são prato do dia quando o tema é futebol. O astro brasileiro Pelé apareceu nos primeiros tempos com amigos. À posteriori, enviou uma foto autografada a agradecer amabilidade e a receção. Pinto da Costa é cliente habitual e contenta-se com “o seu cremezinho de marisco e as lulinhas grelhadas”. Para beber é coca cola… João constata que estas figuras “são completamente diferentes” do que se vê na televisão: “Na TV, Pinto da Costa é mais expansivo, de resposta pronta, mas no dia-a-dia são personagens muito mais calmas, discretas, reservadas. A ideia que passa na comunicação social é um bocadinho diferente da realidade. O presidente do F. C. Porto é uma pessoa muito culta, muito educada e simples. Comecei a vir para cá mais assiduamente no início do século e havia a rivalidade do F. C. Porto com o Boavista, que chegou a ser campeão um ano ‘à custa’ do Porto. Nos jornais dizia-se cobras e lagartos um do outro, e aqui [os presidentes] jantaram os dois normalmente, como se nada fosse”.

O treinador dos Dragões, Sérgio Conceição, também é cliente e muitas vezes o simpático e disponível staff restaurante leva-lhe comida a casa, ambiente em que se revela “uma pessoa completamente zen”. Nem de propósito, sai, entretanto, uma encomenda para entregar a Raul Meireles, ex-jogador do F. C. Porto. Vítor Baía e Bosingwa são regulares e Benni McCarthy era assíduo nestas mesas. Do mundo da política aparecem o atual líder do PSD, Luís Montenegro, a presidente da Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro, e o ex-autarca Narciso Miranda. Não raras vezes, Rui Reininho, vocalista dos GNR, “vem lanchar umas ostras e beber um copo de vinho”, nos intervalos dos ensaios que acontecem ali perto.

Lampreia, uma das atrações da cozinha do restaurante

A sedução dos vinhos

João Pedro Serôdio foi o arquiteto responsável pela intervenção de há cinco anos. A intenção era as pessoas perceberem que “apesar da remodelação, estavam no mesmo espaço, o que foi bem conseguido”, considera João Carlos Silva. Mantêm-se os azulejos originais, as toalhas e apontamentos florais, sem pretensões luxuosas. O ambienteé “casual, para as pessoas se sentirem em casa, à vontade”. Corrigiram-se as arcadas, melhoraram-se as casas de banho, mudou o teto e o pavimento, e criou-se um novo espaço no primeiro piso, vocacionado para eventos e grupos, que podem ainda aproveitar o parque de estacionamento.

Sala do restaurante

Há um episódio caricato sobre o primeiro andar, onde antes morava uma pessoa. A seguir ao almoço costuma vir a nortada e sucede que num sábado, com a sala cheia, se instalou um rigoroso temporal e “o telhado desapareceu”. Felizmente, o inquilino não estava em casa, mas teve de se chamar a Proteção Civil e o “pessoal saiu todo pela cozinha”, conta João Carlos Silva. Já em período de bonança, dividiu-se essa área em dois ambientes, para refeições e provas de vinho regulares, e criou-se um clube em que os produtores vêm apresentar os respetivos vinhos aos convidados. Muitos clientes também trazem e partilhamgarrafas, alimentando o “convívio e o saber”. A cerveja ocupa um espaço nesta marisqueira “residual”, abrindo o apetite. São, porém, os vinhos a reinar… Fruto de algumas coincidências, os players ligados aos vinhos “começaram todos a vir” ao Gaveto, que ficou conhecido “por ser o restaurante mais wine friendly de Matosinhos”, refere a gerência. Excetuando o champanhe, trabalham com referências portuguesas, sobretudo Vinhos Verdes, já que os Alvarinhos ligam “muito bem” com peixes e mariscos, e ainda do Douro. “A ligação entre o vinho e a comida faz todo o sentido. Se tiver um bom prato e não tiver um vinho razoável, não consegue ter uma experiência tão boa. Não tem de ser um vinho caro, mas adequado, servido à temperatura correta, em bons copos e a um preço justo. As pessoas valorizam muito isso”, realça João Carlos Silva.

João Carlos Silva

À boleia do influente Dirk Niepoort, “amigo da casa e grande senador da paixão pelos vinhos”, vieram muitos jornalistas internacionais. Na carta constam, inclusivamente, duas referências durienses resultantes de uma parceria do restaurante com Dirk. Por obra do acaso, o Boa Cama Boa Mesa encontrou o filho de Dirk, Daniel Niepoort, a jantar no restaurante O Gaveto (Rua Roberto Ivens, 826, Matosinhos, Tel. 229378796). Gosta de peixe fresco e assado no forno, de percebes e lampreia, e comenta a relação da família com o restaurante: “A comida está sempre muito, muito boa, e o Gaveto é um bocadinho a nossa cantina, uma boa cantina. Podemos trazer e partilhar vinhos, o que para nós é muito importante. O João também traz vinhos e trata-se de partilhar o amor pelo vinho, com comida ótima e consistente. O meu pai é um gajo que diz para irmos almoçar quando somos dez pessoas, entretanto, já somos 30… E nunca tivemos problema n’O Gaveto, arranjam sempre espaço”.

A antiga equipa de cozinha com Manuel Pinheiro à direita

Matosinhos, a sala de jantar do Porto

Atualmente, “toda a gente conhece Matosinhos como a sala de jantar do Porto”. “Só nestas três ruas, até ao mar, existem cerca de 100 restaurantes. O concelho tem 350, mas grande parte está concentrada aqui, e 90% são vocacionados para o peixe”, diz João Carlos Silva, para quem a restauração de qualidade será, cada vez mais, um “bem de luxo” devido à falta de mão-de-obra e ao custo da matéria-prima. “No futuro, a restauração de qualidade tem de ser mais cara. As pessoas virão menos aos restaurantes, mas vão ter experiências melhores”. Continua a defender a gastronomia típica, demarcando-se da cozinhaimpessoal e indiferenciada, ou de “micro-ondas”. “A comida de tacho, os arrozes, as açordas de marisco e lavagante, o peixe grelhado na hora com arroz feito na hora, é muito diferente da comida já processada e isso é o que vamos continuar a fazer”, garante.

José Manuel Silva mostra mariscos de qualidade

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